A Outra Margem e De Terça Pra Quarta



Nos primeiros momentos de A Outra Margem e De Terça Pra Quarta, quando certas sensibilidades são oferecidas simplesmente para serem subvertidas, ou corroboradas de forma bastante diversa daquela que se apreenderia simplesmente pela disposição e postura de seus personagens na mise-en-scène, uma das primeiras coisas a se chamar atenção é uma curiosa honestidade na observação de certo mundo masculino, que curiosamente nunca se assume como tal. Nathália Tereza filma um agroboy rústico que vaga pela noite ouvindo programas românticos no rádio de seu carro, e ao mesmo tempo que é brutalmente honesta quanto ao espaço que aquele rapaz habita naquela cidade e na relação dele com a moça que o interessa romanticamente, imprime algo de subversivo na maneira de apreendê-lo. Os conceitos de masculinidade e delicadeza que rodeiam aquela figura são enviesados numa malha cuidadosamente tecida.


Não consigo precisar agora a relação de Tereza com o Mato Grosso do Sul, mas estou relativamente certo de que ela observa esse estado/cidade e essas pessoas com um olhar nostálgico e, neste momento, empático, um olhar de quem um dia viveu ali e agora compreende melhor as motivações de personagens vivendo em ciclos viciosos tão especificamente construídos. A Outra Margem parece compreender e aplicar muito bem uma ideia de que a pausa e a dilatação do tempo são grandes ferramentas para fazer com que um universo, mesmo tão distante, seja desvelado e apreendido de forma mais compreensiva. Ver o jovem dirigir seu carro, beber suas cervejas, dançar com sua amada, e voltar para a noite levando no rosto um peso idêntico àquele do começo de sua jornada pode não fazer um espectador compreendê-lo, mas fará com que esteja muito próximo dele.

Já em De Terça Pra Quarta, onde a aproximação talvez seja mais simples, pois aparentemente Lopes se interessa apenas em escrever uma minúscula crônica sobre o fortuito encontro de um rapaz que perdeu o último ônibus com uma trupe de teatro que vaga pela madrugada divulgando seu espetáculo, a ideia da cidade como playground para ideias de expectativas vem ainda mais forte que no filme de Tereza, mas muito como no trabalho dela, passa longe de ser o grande foco. O rosto do protagonista aqui sofre uma transformação muito mais direta, literalmente acompanhamos sua trajetória da apreensão ao medo ao sorriso de revelação, e muito por isso passo a acreditar no filme muito mais como um pequeno relato do poder do elemento humano, com seu toque, seu gesto e seu sorriso, que afrontam a dureza do espaço que o rodeia, do que como um estudo sobre habitar espaços e ressignificá-los.


É visível que esta é uma das propostas de Lopes, que parece ter colocado seus colegas atores dentro de um grande tablado e ordenado que eles o explorassem livremente transformando todo movimento em parte de um grande espetáculo, mas a sequência final, na qual a aparente inocência do rapaz vê vazão para finalmente se corromper através da experiência do ator independente/desbravador da noite, e felizmente nesse ato não há malefício ou julgamento, faz com que este espaço se transfigure infinitamente num sem número de possibilidades. São atores num palco, são pessoas na rua, são personagens de cinema, são seres que transitam entre luz e sombra sem fazer distinção.

Talvez seja a grande mística que rodeia a própria ideia de sombra, tão cara ao próprio cinema, que transforme qualquer imagem surgida ou mergulhada na escuridão em algo tão potente. O brincar sem ser visto, ou o encher de possibilidades um lugar que antes foi um vazio são encantos e abstrações que não raro rendem revelações curiosas quanto àquilo que valorizamos por ver -ou não ver. Não é exatamente como se os filmes de Tereza e Lopes pagassem com suas iluminações orgânicas certa reverência a um cinema de chiaroscuro, de sombras como primeiros agentes narrativos, mas as conexões estão lá para serem desveladas. O que me deixa mais feliz é ver filmes sobre pessoas em ruas, que se querem apenas isso. Não são discursos fundamentes sobre porque há mais ou menos gente habitando aqueles espaços, mas simples fatias de vida.

A Outra Margem (★★★★)
Nathália Tereza, Brasil, 2015

De Terça Pra Quarta (★★★★)
Victor Costa Lopes, Brasil, 2015

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