O Completo Estranho



Talvez seja desnecessariamente óbvio estressar que O Completo Estranho é, antes de um testemunho sobre algo ou alguém, um filme sobre um sentimento cifrado, escondido entre meias escuridões e banhos de neon. Se toda a experiência do cinema se dá através dessas conexões inexplicáveis que surgem entre as vontades do filme e os desejos do espectador, o filme de Mouramateus não seria nada além de um bem sucedido conector de expectativas; mas o que acontece, a princípio e cada vez mais através de seus parcos 25 minutos é tão magicamente intrigante, que tentar amarrar seus anseios enquanto filme numa racionalização comum se torna uma tarefa bastante ingrata. Resumindo da maneira mais honesta possível: este filme precisa ser muito mais vivido do que assistido. A maior evidência dessa necessidade de experimentação, está estampada logo no primeiro plano, uma tela preta, sobre qual uma música reina solitária. Cria-se aqui algo relativamente raro de se encontrar em curtas-metragens, ou talvez no cinema, em geral, que é um contrato muito explícito, uma tentativa de abrir certo diálogo direto com quem assiste. E essa necessidade vai se recriar cena a cena, entre a festa (e toda aquela festividade que não cabe no evento), e a escuridão que leva a uma nova festa, e assim por diante num ciclo eterno.

Geane pede que sua amiga Daiana a resgate da solidão numa festa, e Daiana arrasta seu noivo Luís para lá, e ao chegar eles conhecem Yasmin, e Daiana conversa com Dani, que está prestes a partir, muito provavelmente porque deixou de amar Fortaleza; “a maior cidade pequena do mundo” alguém profere. Não é necessariamente um jogo, porque não existem regras inerentes a existência dessas relações mas, ao mesmo tempo, a maneira como essas pessoas se movimentam, e se beijam, e fazem sexo, dançam coreografadas, e confrontam a câmera ao som de Fuck You do Tomcraft, não pode ser menos que uma ode ao viver na cidade, ao estar presente neste tempo, e principalmente ao hábito demasiadamente humano de querer ser alguém para só então ser notado pelo outro. Inclusive, esse momento no qual Daiana parece performar para o espectador, é seguido de um outro no qual ela dança livremente com as amigas, e esse, por sua vez, é seguido de uma complexa coreografia. Soa muito como um processo hipnótico, um canto de sedução onde a atenção é cuidadosamente direcionada para um lugar, na esperança de conseguir capturar aquele que observa, e nesse caso é um experimento muito bem sucedido.

Como em toda já extensa filmografia de Mouramateus, o ato de festejar está sempre muito ligado à certa catarse, mas não procura nesses momentos uma redenção fácil. Nos atos finais de Europa, quando ele festeja o continente que existe no seu bairro da Maraponga, em Fortaleza, ou Mauro em Caiena, quando o pesar investido na ausência do tio se dilui em meio a voos de parapente e retalhos de um Godzilla clássico, seu cinema se mostra como aparentemente deseja ser visto: uma comemoração. E por isso, em O Completo Estranho, quando pela primeira vez ele rompe com essa estrutura do festejo como amarra para sentimentos espalhados por uma geografia, ele parece se colocar numa posição tão vulnerável quanto suas personagens, se descobrindo num apartamento escuro e vazio. O romance e a desesperança que pautam aquela tão breve relação entre Daiana e Dani são um como longo momento de sobriedade e enfrentamento das resoluções tomadas para a vida, colocado sabiamente entre duas músicas, mas pontuado com uma versão orgânica, e mesmo tocante, da famosa L’amour Toujours, de Gigi D’agostino. “I still believe in your eyes”, diz ele, mesmo não podendo encará-la, de fato. “I’ll fly with you”, diz ela, mesmo não sabendo quem ele é. É certamente um cinema de sensações e, como tal, demanda ser plenamente sentido.


- Este texto é parte da cobertura do 7º Janela Internacional de Cinema do Recife.

O Completo Estranho (★★★★★)
Leonardo Mouramateus, Brasil, 2014

IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW