Um Novo Começo


- Have youself a merry little christmas -

Desde o início do mumblecore até o sucesso do Girls de Lena Dunham (que de uma forma ou outra é a epítome sentimental daquilo que os realizadores do “movimento” tentavam comunicar) -e especialmente nesta última- o egoísmo ganhou um lugar de destaque e uma aura de glamour no cinema independente americano. Se em finais dos anos 90 o maior interesse dos realizadores menos favorecidos pelo sistema era esmiuçar (leia-se: explorar com sadismo descabido) as virulentas relações familiares que escondiam por trás das aparências perfeitas e cercas brancas dos subúrbios -e nesse balaio você encontra Todd Field, Todd Solondz, Sam Mendes, Larry Clark e afins-, a virada do milênio instaurou duas correntes paralelas que foram seguidas com afinco: a primeira e mais popular delas foi a das “comédias-românticas-hipster”, obviamente capitaneada por 500 Dias Com Ela e seu punhado de digressões estéticas e músicas alegres, e a segunda e bem menos popular foi aquela que se debruçava no indivíduo, sempre as voltas com um personagem problemático que lutava para se colocar em sociedade. Em comum, essas linhas narrativas têm personagem que amam a si mesmos acima de todas as coisas; e na maioria das vezes não se trata de uma aversão social patológica, mas apenas a falta de percepção em como eles são desinteressantes, intra e extrafilme.

Todo esse meu devaneio sobre como os anos 2000, e talvez o advento da internet, tenha contribuído para que o cinema passasse a olhar mais e mais para um único indivíduo/universo, aconteceu enquanto assistia este Happy Christmas, último trabalho daquele que é provavelmente meu cineasta americano em atividade preferido, Joe Swanberg. E o devaneio veio porque, pela primeira vez -na obra de Swanberg ou em qualquer outro pedaço de cinema da citada geração-, eu vi o egoísmo ser apontado e analisado dentro do filme; não como um traço de personalidade, mas como o agente nocivo que ele pode se tornar, e que tem o poder de deteriorar laços de carinho criados à tanto custo. Se no passado, em filmes como Hannah Sobe As Escadas e Alexander The Last, Swanberg parecia celebrar essa idiotia de acreditar que o mundo termina às pontas dos próprios dedos, ele agora faz o mundo gritar com essas pessoas, mesmo que de maneira bastante amigável.

Depois de ter sugerido um caminho diferente para sua carreira com o impecável Um Brinde à Amizade -e neste ponto eu me refiro muito mais à ideia de produção, que contava pela primeira vez com atores famosos e um calendário mais estrito de filmagens-, Swanberg parece ter voltado àquele que é seu ambiente de conforto. Esteticamente falando, as imagens em super16mm e a câmera que acompanha a organicidade do diálogo, soam muito mais próprias àquilo que seus filmes tem a dizer, do que certo rebuscamento visual que o trabalho anterior exalava -ainda que sejam igualmente pessoais, e efetivos. Mas ainda pensando na forma, me soa muito nova, e boa, a construção tão espirituosa que as elipses sugerem. Se o filme se divide entre as vidas de duas mulheres que não particularmente se antagonizam, mas estão em lugares muito distantes dentro daquele espectro familiar, cada corte entre sequências parece ter como função maior fazer aqueles universos coexistirem em sentimento; fazer com que a falta de perspectiva que as perturba e as coloca em posições “vilanescas”, justificadamente ou não, seja também aquilo que as une.


As mulheres em questão são Jenny e Kelly, interpretadas respectivamente por Anna Kendrick, com profundidade que por muito esperei dela, e pela sempre competente Melanie Lynskey. Jenny chega em Chicago para morar com seu irmão -o próprio Swanberg em seu melhor momento Alleniano de atuar para si mesmo- mas se vê inserida naquele seio familiar tão pacato, que agora conta com a esposa Kelly, e o filho Jude (que aliás é realmente o filho do diretor). Se estabelecer nos dias que precedem o natal parece uma tentativa muito curiosa de potencializar essa noção de seio-familiar-americano-(quase)-perfeito, que vai sofrer terríveis abalos com a chegada de uma jovem inconsequente. A diversão, e ternura, que tanto exala de Happy Christmas, afinal, é perceber como esse “choque de gerações” pode render louros uma vez que as expectativas são derrubadas; afinal, sem o incentivo da (mais) jovem, Kelly jamais teria a coragem de retomar sua vida por completo, deixando de ser unicamente a mãe de família, e voltando à escrita que tanto lhe fazia feliz. E sem a perspectiva de uma vida tranquila e um amor completo, que a relação do irmão lhe fornece, Jenny destruiria mais e mais qualquer chance de se importar com o sentimento alheio; como efetivamente acontece com o personagem de Mark Webber, o qual ela inadvertidamente manipula à mercê de suas vontades.

E falando dessa relação em específico, existe um momento no filme que me parece bastante importante para compreender o projeto de cinema de Swanberg em suas linhas gerais; e além disso foi das melhores sensações de redescoberta da imagem que o cinema me proporcionou nos últimos tempos. É o momento em que as moças, junto com a amiga Lena Dunham (sim, aquela mesma), e tomadas de uma euforia adolescente, discutem a criação de um livro erótico nos moldes dos afamados tons de cinza, e uma delas sugere que a maneira menos óbvia de narrar um encontro sexual seria dizer que “ela se coloca dentro dele”; essa cena vai desembocar abruptamente naquela em que Kendrick e Webber estão experimentando seu primeiro contato íntimo, e ela se permite usá-lo para testar se a relação de dominância que ela viu nos livros pode efetivamente surtir algum efeito. É uma progressão tão deliciosamente primária de expectativas, que se torna praticamente impossível não compreendê-la, aceitá-la, e perceber nos anseios minimalistas de Joe Swanberg o que realmente significa olhar um filme nos olhos, sem medo de se perder no processo.


Happy Christmas (★★★★★)
Joe Swanberg, Estados Unidos, 2014
IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW