Sobre Bicicletas


Logo quando o trailer de Weekend saiu lá em meados de 2011, e todo mundo (ou pelo menos grande parte da comunidade gay cinéfila) ficou ansioso para assistir aquele que parecia um retrato tão honesto e singelo do amor entre dois homens -e que provou ser exatamente isso quando finalmente foi visto-, eu me percebi encantando por um milissegundo daquela propaganda, que mostrava um dos protagonistas levando o outro num passeio de bicicleta. Ainda que seja aparentemente banal, sempre vi algo de muito íntimo em carregar mais alguém num veículo pensado para servir a um só; esse sentimento fica próximo, para mim, à delicadeza de pentear os cabelos de outra pessoa. Ou seja, ainda que já tivesse bastante contato com o dito “cinema queer”, eu ainda não tinha visto esse tipo tão modesto de carinho ser compartilhado por dois homens num filme, ou assim pensava eu. O filme, e a cena em questão, que dura pouquíssimos segundos diga-se de passagem, permaneceram me assombrando com sua visão agridoce do amor, mas não até recentemente eu lembrei que a carona na bicicleta era uma imagem que o cinema já tinha me oferecido.

Conversando com um amigo sobre o final de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho; mais especificamente a cena onde Léo consegue, pela primeira vez e com o apoio de Gabriel, andar de bicicleta pelas ruas de São Paulo, o que na condição dele seria absolutamente improvável, fui rememorado que em seu primeiro, e até aqui único longa-metragem, Esmir Filho já havia criado um momento como esses. Mas diferente da atmosfera doce e cheia de esperanças que verte daquele excerto no filme de Ribeiro, especialmente pelo fato de ser seu epílogo e ter notadas pretensões de despedir-se do espectador com tal leveza, Esmir enclausura esse milissegundo de carinho e liberdade entre uma cena de morte, e outra em que esses dois garotos emudecem diante de um sentimento tão terno, e óbvio. E não estranhamente eu me notei um pouco desapontado em perceber como Os Famosos e Os Duendes da Morte foi um filme tão desprezado em toda a grandeza de seus sentimentos e sutilezas.

Na cena em questão, o soturno personagem de Henrique Larré e seu amigo voltam da ponte onde os suicídios da vila costumam acontecer, pela mesma estrada em que a Jingle Jangle filmava seus vídeos. O clima muito penoso se dissolve lentamente, e culmina com o rapaz subindo na bicicleta do amigo, e sumindo com ele para fora do quadro. O que se segue é uma aproximação ainda mais íntima, com um dos rapazes tirando uma foto do outro e dizendo que vai guardar aquilo para sempre, o que deixa ambos frente à um abismo de sentimentos que as outras atribulações sensoriais parecem ter tirado de seu foco. Se no filme de Ribeiro, aquele que pegava carona na bicicleta era na verdade o que fornecia apoio, e o protagonismo se dividia entre ambos, no ciclo de carinho e segurança que estabelecia a relação entre eles, e portanto sendo perfeitamente representado por este teste de confiança em se deixar ser guiado no escuro por uma mão no ombro que lhe inspira a mais bruta confiança; Filho prefere não atribuir preciosismos ao momento que Larré -aquele que se apoia porque realmente precisa de apoio- encontra um lampejo de liberdade em não mais andar com seus próprios pés, o que é, entre tantas outras, uma de suas grandes questões ao longo da trama. De qualquer maneira, colocando os três momentos lado a lado, longe de qualquer amarra narrativa, é muito difícil não se contagiar com a esperança que eles sugerem; esperança de quem sabe um dia pegar uma carona pra qualquer lugar fora do plano.

Em sequência: Weekend, e a bicicleta no centro do plano, mantendo a atenção e o interesse nos personagens; Hoje Eu Quero Voltar Sozinho e os planos entrecortados, potencializando a emoção e o perigo daquela situação, mas contrapondo em closes a felicidade e leveza dos garotos ao fazer aquilo; e por fim, a sequência em Os Famosos e os Duendes da Morte, que caminha lenta e majestosamente da mais densa tristeza até uma delicada, ainda que passageira, sensação de alegria, mas sempre permeado por certa tensão sexual. Enquanto o filme de Andrew Haigh mantêm seu tom naturalista, deixando os sons da cidade dominarem o plano, os dois brasileiros sublinham suas intenções climáticas com a música melancólica de Nelo Johann ou divertida do Belle & Sebastian.

Filmes citados:
Weekend (★★★★★)
Andrew Haigh, Reino Unido, 2011
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (★★★½)
Daniel Ribeiro, Brasil, 2014
Os Famosos e Os Duendes da Morte (★★★★)
Esmir Filho, Brasil, 2009

p.s.: Ganhei esta imagem de um amigo; O Verão de Giácomo, de Alessandro Comodin. Belo.