O Homem das Multidões


- “Esta grande desgraça, não poder estar só.” -

É bastante curioso certo questionamento psicanalítico de que sem uma companhia, sem alguém que nos forneça um retorno e nos faça perceber que nossas experiências foram válidas e verdadeiras, seria bastante fácil se perder numa espiral de loucura, por não conseguir provar aquilo que vimos e ouvimos como verdadeiro. E ainda assim, muitas vezes parece que estas pessoas que preferem, ou aprenderam a conviver amigavelmente com a solidão, são muito mais lúcidas em suas concepções de si mesmas e consequentes observações do cotidiano, do que aquelas tão embebidas no outro e na opinião que o outro tem delas. Diferente do que parece afimar Edgar Allan Poe em seu Homem da Multidão, o coração de alguém que tanto investe em observar sem ser observado, deve ser uma leitura interessantíssima.

Para comportar radicalmente toda a amplitude daquilo que este corpo solitário gostaria de afirmar quando se coloca -ou se retira- do mundo, é preciso vê-lo por completo, e assim, por mais lindo que fosse, qualquer outro formato de tela além desse escolhido por Cao Guimarães, Marcelo Gomes e Ivo Lopes Araújo para fotografar a história de seu Homem das Multidões passaria muito longe do real sentimento que comanda a história. Quanto mais larga a tela, mais espaço haveria para respirar, para tomar contato com o mundo e com as pessoas, para se jogar numa liberdade que não é particularmente atraente ao personagem de Paulo André. Ao mesmo tempo que a tela achatada soa como um molde feito exclusivamente para comportar um único corpo, aquele tão desinteressante para a velocidade da urbe mas tão interessado nela, essa escolha também soa como uma brecha, uma janela que de certa maneira nos coloca na mesma posição quasi-voyeurista desse homem, volta e meia nos forçando a tentar encontrá-lo por trás de multidões apressadas, festivas, ou mesmo no quadro vazio, quando sua presença pode ser apenas um devaneio.

Não exatamente em contraponto, mas de maneira bastante diferente, se comporta a personagem de Silvia Lourenço, companheira de trabalho do Homem, no posto de controladora dos trens. Tão solitária quanto ele, ela visita o mundo através do aparato tecnológico que espalha ao redor de so, especialmente o computador. Talvez sejam esses momentos em que Guimarães e Gomes tentam teorizar abertamente sobre como a pressão do mundo moderno e o advento da tecnologia suprimiram o contato humano, e por isso a moça esteja sempre tão ávida por qualquer relação real, como as conversas unilaterais que mantêm com o colega, ou em seu absurdo casamento com um quase desconhecido que encontrou na internet.

Se de certa maneira a solidão dessas pessoas é tida como um traço de personalidade, o filme resvala em qualquer incoerência quando sugere buscar “respostas” ou “soluções” para que as vidas deles se tornem um pouco mais interessantes que longos silêncios e caminhadas em busca de aglomerações. Felizmente, esta não é uma fábula, mas sim uma crônica que tira do cinema de Cao, o estilo e o rigor necessários para se escrever um texto, e de Gomes o tanto de poesia e carinho necessários para amá-lo. Talvez este Homem das Multidões seja como a pessoa que nunca recebeu as cartas daquele narrador-personagem de Viajo Porque Preciso Volto Porque Te Amo; alguém cujos verdadeiros motivos e vontades nunca poderemos realmente conhecer, mas que aceitamos e compreendemos totalmente.

O Homem Das Multidões (★★★★)
Cao Guimarães e Marcelo Gomes, Brasil, 2013

IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW