Sob a Pele


- The Woman Who Fell To Earth -

O texto a seguir contém spoilers, não leia caso se incomode com isso.

No início de Sob a Pele, atravessamos o universo na companhia de uma voz que repete uma dezena de fonemas, como uma criança em suas primeiras aulas de alfabetização. Muito da inocência latente que a personagem de Scarlett Johansson vai exibir durante o filme realmente tem algo que ver com este seu descobrimento da linguagem, numa maneira tão naturalmente associada com a infância. Para todos os efeitos, a alienígena que vêm à terra numa missão tão complexa que nem ela mesma é capaz de compreender em totalidade, nada mais é do que um ser inocente perdido na violência que a envolve; um androide que vai se ver forçado à aceitar, compreender e finalmente absorver um pouco da humanidade que existe em cada ser terrestre.

Essa sensação de (re)descoberta dos sentidos que Johansson percebe a cada situação que o contato com suas vítimas proporciona, seja através do sabor de uma torta de chocolate ou da música alta em uma boate lotada, caminha muito próxima daquilo que o espectador está experimentando, ainda que em nível completamente diferente. O filme se mostra uma experiência tão brutalizante em sua intencional falta de “comos e porquês”, que o frio das inóspitas ruas de Edinburgo atravessa a tela e começa a incidir diretamente sobre qualquer um que se proponha a lhe experimentar. A noção de que o ser humano pode ignorar a maneira descortês com a qual é tratado pela natureza, e continuar inabalável em sua crença -como demonstra a cena em que um casal se joga no mar congelante para tentar salvar seu cão de estimação- apenas potencializa essa leitura quase espiritual que Jonathan Glazer faz da vida na terra.

A enigmática trama de Sob a Pele deriva do romance homônimo de Michael Faber, adaptada por Walter Campbell de maneira mais respeitosa do que direta, dizem aqueles que leram o livro. A confusão causada pelas intenções do ser que vive através da pele de Johansson é o que transforma o texto de Campbell em grande escrita; já que vemos o filme através das experiências dela, não há verdadeira razão para que se perca tempo em esmiuçar o que cada um destes momentos significa em sua sobrevida longe de seu habitat natural. Essa questão também é importante para se perceber que, diferente do que seus visuais, temática, e dissonâncias da trilha sonora maravilhosamente composta por Mica Levi tendem a indicar, a vibração pode ser parecida com a de uma ficção científica, ou mesmo de um horror, mas este é um verdadeiro drama, de estrutura bastante simples, que usa imagens sobrenaturais para lidar com questões puramente orgânicas.


“O quê faz um humano ser um humano?” pode ser a primeira e mais aparente delas, mas o gênero e sua identidade também ecoam com bastante força em uma poderosa progressão de sequências, que se inicia quando Johansson pinta os lábios com um batom e só então parece estar pronta para iniciar sua caçada; mesmo já tendo vestido as roupas de sua antecessora momentos antes. Seu escaneamento visual das ruas da cidade está perpetuamente focado em homens solitários, o que vai mudando gradativamente a cada novo sopro de vivacidade que ela recebe, e em dado momento a caça dá lugar à uma curiosidade/identificação perfeitamente compreensível àquelas mulheres que são tão parte do mundo quanto os homens, e antes não despertavam qualquer interesse. Não quero comentar diretamente a sequência final por medo de que ela perca seu grande poder de choque, mas apenas o fato de começar no escuro e terminar com excesso de luz, me faz pensar que Glazer diz muito mais sobre o sexo, e sobre o ser mulher, do que Lars Von Trier jamais conseguiu com Ninfomaníaca.

Uma parte desse subtexto tão interessante pode ser creditada à escolha de Glazer em filmar a aproximação de Johansson às suas primeiras vítimas de maneira quase documental: a atriz dirigia pelas ruas menos movimentadas da cidade, e efetivamente convencia homens à embarcar em sua van; somente aí a equipe deixava claro que se tratava de um filme. As expressões dos rapazes sendo abordados por uma beleza tão estonteante é encantadoramente natural, e fundamental para que se justifique a maneira tão imprudente com a qual eles reagem ao convite mortal; mesmo nos últimos instantes de vida, quando o fato de estar “atuando” pode atrapalhar a verdade alcançada antes, a compenetração de alguém que acredita estar caçando e sendo muito bem sucedido -quando na verdade é a caça-, exala do rosto de cada um deles, ator ou não.

O encontro com um rapaz que não percebe o corpo da alien como algo a ser conquistado, é aquele que a inflige mais dúvida; não mais que de repente ela deixa de ser desejada e passa a desejar, o que foge completamente de sua realidade, e que vai injetar nela o doce desejo de ser uma mera mortal. No fim das contas, Sob a Pele pode ser uma pequena tese sobre o momento da vida em que passamos a acreditar em nossas concepções como válidas e cabíveis, mas a verdadeira fascinação que o filme causa, vem de jamais poder estar certo disso. Fato é que ninguém consegue se preparar para uma experiência como essa, ou esquecê-la tão facilmente.


Sob a Pele (★★★★★)
Jonathan Glazer, Reino Unido, 2013

IMDB ROTTEN KRITZ FILMOW